Buscapé

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Prédios escondem memórias de SP

Este artigo eu encontrei no site o "Estadão"...

Por Valéria França

O crescimento desorganizado e a constante mudança do cenário urbano eliminaram referências importantes da história de São Paulo. Quem poderia imaginar, por exemplo, que a Igreja de Nossa Senhora dos Aflitos, uma pequena capela, escondida num beco que sai da Rua dos Estudantes, na Liberdade, no centro, foi um dia parte do primeiro cemitério paulistano, fundado em 1775. Mais ainda: que os prédios construídos ao seu redor surgiram no lugar de covas de escravos, de condenados à forca - sim havia pena de morte na época -, de vítimas de doenças contagiosas, como varíola."Boa parte da memória de cidade está soterrada", diz o arqueólogo Sérgio Monteiro da Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), da Universidade de São Paulo (USP), que há sete meses integra a equipe que estuda as múmias do Mosteiro da Luz, também no centro. O grupo de estudiosos chegou lá por causa dos cupins, que ameaçavam o prédio. E eles levaram a equipe até um cemitério canônico desconhecido. Hoje a análise desse material faz parte de um projeto que vai muito além do mosteiro. "O plano é vasculhar os registro de todos cemitérios religiosos que sumiram da paisagem, mas que podem contar muito sobre São Paulo. Quando for possível, faremos como em Roma, escavaremos."No centro, há muitas igrejas que mudaram de lugar para dar espaço a novas construções, caso da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, antes localizada no Largo João Mendes (antigo Largo de São Gonçalo), onde mais tarde surgiu o Fórum Central Cível. Demolida em 1942, ela foi transferida para o Rua Tenente Azevedo, no Cambuci.A Igreja do Carmo também não resistiu no local de origem. Em 1927, ela recebeu torres projetadas pelo escritório de Ramos de Azevedo, mas, no ano seguinte, o governo do Estado desapropriou e demoliu a construção religiosa, abrindo caminho para a Avenida Rangel Pestana, para ligar o centro à zona leste. A Ordem dos Carmelitas chegou ao Brasil em 1580, com a missão de fundar conventos em várias regiões do Brasil. Doze anos mais tarde, o frei Antônio de São Paulo Pinheiro fundou a Igreja do Carmo de São Paulo, em terras que ficavam na várzea do Tamanduateí, doadas por Brás Cubas, explorador português fundador da Vila de Santos e governador da Capitania de São Vicente. Em 1596, levantaram o convento das carmelitas. A Igreja São Pedro sumiu de vez, dando lugar ao prédio da Caixa Econômica Federal. Já a antiga Igreja da Sé foi substituída pela atual Catedral da Sé. Segundo os registro da época, São Pedro e Sé eram quase vizinhas. Sua extinção veio com o processo de expansão do centro, no século 16, quando o Largo da Sé deu origem à atual Praça da Sé. "Há notícias de que naquela região existiam quatro igrejas muito próximas, mas não sabemos a localização certa", diz Silva. A abertura dos carneiros (espécie de gavetas mortuárias) das irmãs concepcionistas, do Mosteiro da Luz, deram noção do quanto é possível recuperar uma história. Os fósseis podem confirmar ou desmentir registros históricos que constroem a memória de uma época." Em 1948, por exemplo, durante as fundações de um prédio na altura do número 470 da Rua São Bento, foi encontrada uma ossada humana. Arquivadas pela Serviço de Identificação do Laboratório de Antropologia de São Paulo, as fotos desse material nunca foram publicadas e fazem parte de um acervo interno ao qual a população não tem acesso. "Foi a partir desse achado que os especialistas conseguiram a exata localização da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que também tinha um cemitério, como toda as igrejas antigas", diz Silva. Fundada em 1725, a capela da irmandade foi desapropriada em 1903. Com o dinheiro recebido do governo, os religiosos construíram a igreja que fica no atual Largo do Paiçandu.

HOSPÍCIO

No início da história da cidade, não havia cemitérios, apenas aqueles construídos pelas igrejas, onde eram enterrados os religiosos e figuras importantes da sociedade. O Mosteiro da Luz chegou a abrigar o Cemitério dos Alemães e dos Protestantes, transferidos mais tarde para o da Consolação. Em 1828, a Câmara Municipal proibiu os enterros em igrejas. Mas, durante muitos anos, essa prática ainda foi mantida. O levantamento de registros de óbitos levam a outras instituições importantes, que também sumiram do mapa. É o caso do Hospício dos Alienados, que ficava na então Estrada da Mooca com Rua Tabatinguera, na zona leste. Ali, em 27 de junho de 1871 faleceu Paulo Emílio de Salles, conhecido como o poeta Paulo Eiró, de meningite, aos 36 anos. O poeta nasceu na Vila de Santo Amaro e foi internado na instituição pelo pai, em 1866, depois de ter interrompido uma missa e quebrado um crucifixo. Antes, bem próximo ao hospício, na Rua das Flores, travessa da Rua Tabatinguera, funcionou o primeiro asilo do Brasil, este aberto pela Santa Casa da Misericórdia. Com caráter provisório, funcionou de 1836 a 1848, para recolher isoladamente os insanos. Segundo os registros do hospital, dois padres e uma mulher inauguraram o lugar. A irmandade também foi responsável pela Casa dos Lázaros, conhecido como Lazareto, destinado ao tratamentos de pessoas com hanseníase (na época, ainda chamados de leprosos), na região da Luz. Funcionava onde mais tarde foi construído o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, na Rua da Cantareira.Na área da saúde e assistência social, a Santa Casa de Misericórdia foi instituição fundamental na história da cidade. Inicialmente, em 1825, funcionou na sede da Chácara dos Ingleses. Ficava no Caminho da Glória, terreno limitado pelo Largo 7 de Setembro, Córrego Lava Pés e Rio Tamanduateí. Apesar das modificações estruturais, a casa logo ficou pequena e a instituição começou uma campanha por uma nova sede. Mais de duas décadas depois, em 1840, na esquina da Rua da Glória com a Rua dos Estudantes, foi inaugurado o hospital, que mais tarde deu lugar ao Externato São José.

POETAS

E a antiga sede da chácara, que havia abrigado a Santa Casa - uma construção rara para a época, de dois andares, com cavalariça e cozinha - , se transformou numa república de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Lá, viveram, por exemplo, os poetas Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo, que chegou a escrever sobre a república e os arredores. "Defronte ficava o cemitério (dos Aflitos) e, ao lado, um casarão em ruínas. É para desgostar um homem, toda a sua vida ver ruínas." Segundo o poeta romântico, a região era um descampado, iluminado por lampiões. "Iluminavam pouco, com maus pavios alimentados com azeite ruim, às vezes de mamona, outras de peixe e pendurados nas paredes dos edifícios."

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